A Lei 14.454/22, que ficou conhecida como Lei do Rol, completa oito meses de vigência neste mês de maio. O texto foi uma resposta do Congresso Nacional à decisão do Superior Tribunal de Justiça de que o rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) era taxativo, isto é, deveria cobrir apenas os procedimentos e eventos de saúde contidos em lista determinada pela agência reguladora. Com a aprovação da lei, o rol voltou a ser exemplificativo, servindo de base para a cobertura de assistência médica e odontológica no país, estando os planos obrigados a cobrir procedimentos não listados, mas com comprovação científica e indicação médica. Na prática, no entanto, o cenário de disputas permanece o mesmo.
Levantamento feito pelo escritório Silva Nunes Advogados, especialista em Direito Médico, revela o que a percepção dos clientes de planos de saúde já sabia: as reclamações só aumentam. Os dados são do Índice Geral de Reclamações (IGR) da ANS, criado em 2018 para, segundo o próprio regulador, servir de “termômetro” de satisfação dos serviços prestados pelas operadoras de planos de saúde aos seus clientes. O valor do índice indica o número de reclamações no período para cada grupo de cem mil beneficiários.
Em 2018, primeiro ano de medição, o índice geral do setor médico-hospitalar era de 15,5. E foi subindo: 21,5 em 2019; 24,1 em 2020; 30,2 em 2021; 37 em 2022 e 43,3 em 2023 (considerando para este ano os meses janeiro, fevereiro e março).
A maioria absoluta das reclamações refere-se, claro, a coberturas. E embora a própria ANS tenha criado e disponibiliza-se o IGR de forma pública, ela mesma tem se esquivado da responsabilidade de fiscalizar o cumprimento da Lei do Rol, de 2022, afirmando que o texto não atribui a ela a função de regulamentar os critérios estabelecidos para coberturas fora do rol.
Na visão da advogada Mérces da Silva Nunes, sócia do Silva Nunes e especialista em Direito Médico, a agência tem sim competência para tal. “Embora a ANS faça tal alegação, há fortes evidências de que ela tem competência para regulamentar os critérios estabelecidos para coberturas fora do rol, pois o artigo 4º, III, da Lei 9.961/2000 dispõe que compete à ANS elaborar o rol e suas excepcionalidades”.
Ainda sobre o levantamento, é possível apontar os Estados campeões no índice de reclamações, com números bem acima da média (dados de 2023, referentes aos meses de janeiro, fevereiro e março). São eles: Roraima (229,5), Amapá (138,1), Acre (92,6), Bahia (77,8) e Sergipe (73,8). Rio de Janeiro ocupa o 8º lugar no IGR 2022, com 61,1 e São Paulo o 10º lugar, com 51,6.
Entre as operadoras de planos de saúde com maiores índices, o top 10 de março de 2023, últimos dados disponibilizados pela ANS, traz:
Mérces Nunes destaca que o caminho, para o consumidor, continua sendo o da via judicial. “Na hipótese de negativa na cobertura de medicamento, tratamento ou procedimento pelo convênio médico ou plano de saúde e estando comprovado que os requisitos da Lei 14.454/22 foram atendidos, o consumidor deve ingressar na Justiça para pleitear a cobertura do procedimento/tratamento indevidamente negada pela operadora de plano de saúde”.
Decisões favoráveis
Segundo outro levantamento realizado pelo escritório Silva Nunes Advogados, durante os meses de março e abril de 2023, o Tribunal de Justiça de SP contabilizou 310 decisões relacionadas ao rol dos planos de saúde, sendo 294 favoráveis aos usuários e apenas 16 a favor dos planos de saúde. Em todas as decisões a favor dos usuários, os magistrados consideraram o rol exemplificativo, citando a lei 14.454/22 como referência, além do Código de Defesa do Consumidor. São casos diversos, como fornecimento do medicamento canabidiol para o tratamento de doenças, a cobertura do tratamento ABA para pessoas portadoras do espectro autista, medicamentos oncológicos, exames genéticos e tratamentos de assistência domiciliar (home care), entre outros.
Nas poucas decisões favoráveis aos planos, os magistrados concluem, em regram que não houve comprovação técnica, por órgão competente, para as recomendações médicas descritas.
Comprovação científica
Na Lei 14.454/21. não há definição objetiva de órgãos ou de qualidade de estudos e pesquisas para serem referência na cobertura de tratamentos e/ou medicamentos. Para Mérces, bastaria a indicação de agências de renome. “A falta de indicação expressa no texto normativo, de agências de renome internacional, não deve inviabilizar a cobertura dos tratamentos prescritos pelos profissionais da saúde, tendo em vista a possiblidade de se adotar, no caso concreto, uma das 4 principais agências internacionais de ATS, reconhecidas pela ANS nos processos de atualização do Rol, quais sejam: NICE (Reino Unido), CADTH (Canadá), PBA (Austrália) e SMC (Escócia). Todas são referências nos processos de incorporação de tecnologias em saúde efetivados pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde)”.
Tema no STF
A abrangência do rol e o que ele deve ou não cobrir ainda pode ter reviravoltas. Isso porque há uma ação movida pela União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde (Unidas), em que se pede que os ministros julguem a constitucionalidade da lei 14.454/22. A Unidas alega que a lei fere o caráter complementar da assistência à saúde exercida pela iniciativa privada, porque a possibilidade de cobertura de tratamentos médicos não previstos no rol da ANS, na prática, significa exigir das operadoras de saúde suplementar mais do que a obrigação imposta ao Sistema Único de Saúde.
Mérces Nunes lembra que em 29 de fevereiro, o Procurador-Geral da República opinou pela constitucionalidade da lei, defendendo que a decisão das operadoras no desenvolvimento da atividade empresarial pressupõe a responsabilidade de arcar integralmente com as obrigações assumidas, considerando o caráter público da atividade e os princípios e valores da ordem econômica. “Assim como o PGR, eu entendo que a previsão de cobertura excepcional não impacta o poder regulatório da ANS, visto que a agência ainda segue com a atribuição de definir e atualizar o rol de procedimentos. No entanto, avalio que, no contexto atual, a decisão do STF ainda é uma incógnita, assim como eventual modulação dos efeitos do julgamento”, finaliza a especialista.