Tão virais quanto o próprio coronavírus, as fake news continuam a se espalhar pela sociedade brasileira, mesmo dois anos após o fim da pandemia. Em 2024, nove em cada dez brasileiros disseram ter recebido algum conteúdo falso ou distorcido; oito admitiram ter acreditado nele.
Para Neyson Freire, pesquisador, assessor de comunicação do Conselho Federal de Enfermagem e autor de No Reino da Mentira: A (des)informação na linha de frente da saúde, o que se vê hoje é a persistência da infodemia, fenômeno que nasceu junto com a Covid-19 e que, ao contrário do vírus, ainda não encontrou uma vacina capaz de barrar sua propagação.
“A desinformação marcou a pandemia tanto quanto o próprio vírus. Nos primeiros dias já circulavam conteúdos falsos, não apenas sobre a doença, mas também sobre enfermeiros e médicos na linha de frente”, lembra. “Como líder de comunicação, vivi uma rotina de plantão quase permanente. Enquanto os hospitais lotavam, o Cofen acabou se tornando a principal referência de fact-checking para a imprensa nacional e internacional.”
O livro, lançado pela editora Jaguaírica, intercala cinco capítulos analíticos com artigos de pesquisadores e relatos pessoais de profissionais de saúde que enfrentaram o duplo desafio: salvar vidas e combater boatos. O resultado é uma obra que ilumina as novas batalhas contra a desinformação num cenário de pós-pandemia, agora potencializado por ferramentas digitais ainda mais velozes.
Confira a entrevista com o autor:
CartaCapital: A desinformação não é novidade, mas o volume de desinformação produzidas durante a pandemia inaugurou um novo desafio. Como a infodemia mudou a dinâmica de trabalho no Cofen?
Neyson Freire: Logo quando a Organização Mundial da Saúde declarou a pandemia da Covid-19, começamos a identificar conteúdos desinformativos. E isso também adentrou rapidamente a enfermagem. Tínhamos pouca informação sobre o coronavírus, o que causava e como se prevenir – naquela época, nem falávamos de combate. Estamos falando de mais de 3 milhões de profissionais, 80% deles na linha de frente, e afetados diretamente pelas fake news.
A primeira resposta foi montar um comitê de crise para atender à urgência da imprensa e também começar campanhas de combate à desinformação. Isso logo no primeiro mês, tá?
CC: Quais foram as medidas mais efetivas nesse enfrentamento?
NF: Inicialmente, procuramos implementar estratégias de escutas para entender quais eram as dúvidas da população, e em segundo, trabalhar com o sistema de fact-check. Criamos parcerias para criar um sistema de checagem, um verdadeiro observatório. Montamos campanhas publicitárias, nas redes sociais e até televisivas à época.
CC: E quando surge a ideia de pesquisar o tema mais a fundo?
Nf: A intenção inicial era acadêmica. Meu foco inicial de pesquisa de mestrado era a construção e validação de uma matriz de competências para conselheiros federais e regionais de enfermagem. Mas toda a mudança de dinâmica que a infodemia trouxe ao meu trabalho me fez querer entender o fenômeno. A partir daí, estruturei alguns temas que valia pena investigar, como os enfermeiros e médicos influencers que propagavam desinformação na época e também o boom da IA.
CC: Você dedica um capítulo ao enfermeiro Anthony Penza, que ficou famoso ao contrariar orientações da OMS. Por quê?
NF: O Anthony Penza ilustra bem como a desinformação pode ser fatal. Ele minimizava o perigo do vírus, promovia tratamentos sem eficácia e tentava boicotar o distanciamento social. E ele ilustra bem também uma outra questão: o peso da imagem nas redes sociais.
Ele vestia um jaleco branco, com um estetoscópio. Alguns acreditavam que ele era médico, outros sabiam que era enfermeiro… O ponto é, o jaleco e o estetoscópio passam uma imagem de veracidade, de seriedade. E isso foi uma faca de dois gumes, né? Tanto deu credibilidade para as pessoas acreditarem nele, como minou a credibilidade social que a enfermagem e a medicina em geral tem na sociedade. De tanto romper com o isolamento social e desacreditar das medidas, ele acabou sendo infectado pela Covid-19 e não resistiu. A partir da história dele, consigo falar sobre a letalidade da desinformação. Ao fim, a causa da morte foi a Covid-19, mas o que levou a ela foram as fake news.
CC: No livro, você narra um encontro marcante durante uma fiscalização em Porto Velho, quando encontrou seu ex-sogro internado em estado crítico. Como esse episódio afetou sua visão da pandemia?
NF: Sim, foi talvez um dos momentos mais marcantes da pandemia. Em Porto Velho (RO) participei de uma fiscalização de um hospital particular que atende ao SUS após a denúncia de irregularidades e superlotação. É difícil descrever o que vi. As UTIs foram transferidas para os corredores e até áreas externas cobertas, como a garagem.
Foi lá que, de longe, eu vi alguém conhecido. Ao me aproximar, descobri que era meu ex-sogro, avô de um dos meus filhos. Ali eu prometi a ele que ia lutar pelo melhor atendimento, voltei ao hospital durante dias, sempre tentando ser o suporte que ele precisava em um momento que nem a minha ex-esposa podia visitá-lo. Mas o quadro dele piorou, foi entubado e não resistiu. Fui a última pessoa a vê-lo.
Foi nesse episódio que consegui enxergar o tamanho do trabalho que nós, e principalmente os profissionais de saúde, estávamos fazendo. Aliás, os profissionais da saúde que são os verdadeiros heróis. Para resumir, o que eu posso dizer é que, em retrocesso, a pandemia foi um grande aprendizado para a carreira para todos que atuamos.
CC: No capítulo final, você analisa as novas ferramentas da desinformação e faz projeções para o futuro. Se a pandemia teve fim, podemos esperar o mesmo da infodemia?
NF: Eu acredito que exista esperança para chegarmos ao fim da infodemia, e embora eu fale que a inteligência artificial é tanto um risco quanto um caminho para o combate à desinformação, acredito que a saída está na educação. Não apenas a tradicional, mas uma nova construção que contemple a educação digital em meio às disciplinas escolares. É preciso ensinar a usar as redes sociais, especialmente as novas gerações.
Mais do que regular as redes, é preciso promover uma revolução pedagógica para que ninguém mais se perca nesse labirinto de informações que circulam e são produzidas diariamente – algumas inclusive com intuito maléfico. Precisamos aprender muito mais que distinguir fake news, as pessoas precisam entender o que é informação falsa, o que é informação manipulada, o que é uma deep fake construída para gerar desinformação etc.
Fonte: Carta Capital