
Com uma carreira consolidada no Brasil, a obstetriz Natália Rea Monteiro embarcou para o norte de Moçambique com a missão de ajudar a redução da mortalidade materno-infantil em uma região conflagrada. A ideia de se juntar a uma missão humanitária internacional, acalentada por anos, se tornou possível com o crescimento da filha, Helena.
“Senti que havia chegado a um ponto onde buscava um desafio diferente, em um contexto de maior necessidade e com um propósito humanitário claro”, conta. Foram seis meses com o Médicos Sem Fronteira (MSF) na Província de Cabo Delgado, onde conflitos armados já forçaram 300 mil pessoas a fugirem de casa desde o final de julho.
Talvez nenhum indicador de Saúde escancare desigualdades de forma tão escandalosa como a mortalidade materna. O índice, que é de 2 mortes por 100 mil nascidos vivos na Noruega, chega a 1047 na Nigéria. Moçambique está entre os 10 países com a redução da mortalidade materno-infantil nos primeiras duas décadas deste século, mas o índice ainda choca. Morrem 451.6 mulheres a cada 100 mil nascidos vivos (censo 2017)
Em Cabo Delgado, esses números tiveram rostos e histórias. “Um caso que jamais esquecerei e que sintetiza, de forma brutal, os desafios de atuar em Moçambique, foi o atendimento a Inês, uma adolescente de apenas 16 anos”, conta Natalia. “Inês chegou ao nosso hospital já em estado gravíssimo, com uma ruptura uterina completa. Descobrimos que sua família a manteve em trabalho de parto em casa por dois dias inteiros. O motivo? No primeiro parto de Inês, quando ela tinha apenas 13 anos, ela precisou de uma cesariana, e a família teve uma experiência negativa com o pós-cirúrgico, optando por evitar o hospital a todo custo na segunda gestação”, conta.
A consequência dessa decisão foi devastadora. “Inês chegou tarde demais: constatamos a morte fetal intrauterina. Lutamos para salvar a vida da Inês, e a única opção foi a realização de uma histerectomia de emergência — a retirada do útero — para conter a hemorragia e a infecção generalizada. A cirurgia a manteve viva, mas ela ficou em coma no nosso hospital por cerca de um mês. A situação era de extrema complexidade. Infelizmente, a história teve um desfecho trágico: a família solicitou alta a contragosto da equipe médica e Inês morreu no mesmo dia em que voltou para casa”, relata.
A gravidez infantil está associada a um maior risco de síndromes hipertensivas, morte materna, óbito neonatal, prematuridade e à transmissão geracional da pobreza. No Brasil, meninas de 10 a 14 anos apresentam uma taxa de mortalidade materna muito superior à média nacional, segundo dados do Ministério da Saúde, tabulados pelo Observatório Criança não é Mãe.

MSF fornece sessões de orientação a parteiras tradicionais, com ações de promoção de saúde que incluem noções de higiene e orientações sobre como detectar sinais de risco. “A ideia é facilitar sempre que possível a realização de partos em hospitais, o que reduz a mortalidade materno-infantil”, segundo a organização internacional.
Parto fez nascer nova profissão
A trajetória profissional de Natalia começou no universo das artes plásticas. “Embora meus pais sejam médicos, a medicina nunca foi um caminho óbvio para mim. Antes de me dedicar à saúde, atuei por anos em arte-educação e na montagem de exposições em museus de arte aqui em São Paulo”, conta.
“A verdadeira virada aconteceu de forma muito pessoal: o nascimento da minha filha, Helena, há 20 anos. A experiência do parto e do puerpério foi transformadora para mim. Senti um chamado profundo, uma vocação latente, para apoiar outras mulheres e famílias nesse momento de vida tão crucial e vulnerável”.
Aos 30 anos, com uma bebê, Natalia decidiu prestar vestibular novamente. Ingressou no curso de Obstetrícia na Universidade de São Paulo (USP). Já se vão quase duas décadas dedicadas ao pré-natal, parto e pós-parto humanizados.
O sonho: mudar o mundo, um nascimento por vez
A ideia de se juntar à missão internacional tem raízes antigas. “Lembro-me de ter assistido, anos atrás, a uma palestra impactante de uma obstetriz que havia trabalhado com os Médicos Sem Fronteiras (MSF). Aquilo plantou uma semente em mim, mas, na época, minha filha Helena ainda era muito pequena, o que inviabilizava uma partida de longo prazo”, conta Natalia, que cita também a influência da mãe. “O trabalho humanitário sempre foi valorizado na minha família. Minha mãe, médica, trabalhou e ainda faz consultorias para a ONU (Organização das Nações Unidas)”, conta.
“Quando minha filha cresceu eu entendi que era o momento de concretizar esse sonho”. A oportunidade surgiu com um anúncio de vaga para atuar em Moçambique. Com a maior parte de sua trajetória na rede privada, Natália estava insegura, mas decidiu se candidatar.
“O processo seletivo com os Médicos Sem Fronteiras é rigoroso e desafiador, o que é compreensível, dada a complexidade das missões. Envolveu a análise detalhada do meu currículo, entrevistas técnicas para avaliar minha capacidade de adaptação e resiliência, e a comprovação de vasta experiência prática em obstetrícia. Foi um processo exigente, mas que me preparou para a realidade da missão em Moçambique”, conta a obstetriz.
Choque de realidade: o cuidado na vulnerabilidade

“Ao chegar ao campo de missão em Moçambique, o que mais me chocou foi a materialização da precariedade em estado extremo. No Brasil, mesmo em serviços públicos com desafios, temos uma estrutura mínima que, de certa forma, nos dá suporte. Lá, a falta de recursos básicos era o primeiro e mais brutal choque técnico: dias sem acesso à água potável no hospital e condições sanitárias (banheiros) absolutamente insalubres tanto para a equipe quanto para as pacientes”, conta Natália.
“A normalização social de gestações em adolescentes de 14, 15 e 16 anos foi algo difícil de processar. Não apenas pela idade cronológica, mas pela maturidade física e emocional dessas jovens, que muitas vezes enfrentavam o parto sozinhas”, relata. “Percebi que ali, mais do que nunca, a obstetrícia não era apenas sobre o nascimento, mas sobre a capacidade de adaptar o cuidado em um contexto de vulnerabilidade. A cada dia, eu percebia que meu trabalho ia muito além de aplicar protocolos, exigindo resiliência, criatividade e a capacidade de tomar decisões rápidas com recursos limitados, algo muito diferente da minha rotina antiga”, conta.
Resilência e apoio mútuo
“Lidar com a dimensão humana do trabalho em campo, em um ambiente de recursos limitados e distante da minha própria família, é, talvez, o aspecto mais desafiador da missão. O luto é uma rotina, infelizmente. Casos trágicos são frequentes, e a perda se torna uma companheira diária”, conta.

“A forma como gerenciamos isso depende muito do suporte mútuo e da resiliência. Cria-se um vínculo de grande camaradagem e profissionalismo entre os colegas de missão — médicos, enfermeiros, logísticos. Eles são seu sistema de apoio imediato e o grupo de pessoas que realmente entende o que você está vivendo naquele contexto isolado, o que é fundamental para a saúde mental no campo”, explica a obstetriz.
Tecnologia ameniza a saudade. “A distância da minha família no Brasil era amenizada pelo fato de que conseguíamos nos falar todos os dias por vídeo. Isso era essencial para manter o equilíbrio. A resiliência, por sua vez, não é algo que você “liga” ao chegar lá; é uma capacidade que você exercita a cada plantão, a cada óbito evitado e a cada vez que você precisa se reerguer após uma perda. No fim das contas, a dimensão humana do trabalho lá é intensa e brutal, mas a capacidade de cuidar do outro, mesmo em meio ao caos, reforça o nosso propósito e nos ajuda a seguir em frente”, diz Natalia.
Nova missões no horizonte
“Após seis meses em Moçambique, voltei uma pessoa e uma profissional profundamente mudada”, conta Natalia. “Como pessoa, a experiência me proporcionou uma reavaliação radical do que é essencial na vida. Aprendemos a reclamar menos das pequenas coisas e a valorizar imensamente o acesso à infraestrutura básica que temos no Brasil — desde a água encanada e saneamento digno até um sistema de saúde minimamente estruturado. A resiliência que testemunhei no povo moçambicano, que enfrenta adversidades diárias inimagináveis com uma dignidade impressionante, mudou minha perspectiva sobre a vida e a capacidade humana de adaptação”.
“Como profissional, minha visão da obstetrícia se expandiu enormemente. A missão foi focada na gestão e coordenação. Eu tive a oportunidade de gerenciar uma equipe de obstetrizes locais, coordenar ações de planejamento familiar e formação de parteiras tradicionais, e supervisionar o manejo de casos de violência baseada em gênero, que são, infelizmente, muito prevalentes. Percebi que minha capacidade de improvisação, liderança e tomada de decisão rápida em cenários de recursos limitados foi testada ao extremo, e saí de lá mais confiante na minha capacidade clínica e de gestão”, avalia.
A experiência abriu um novo capítulo profissional. “Pretendo continuar meu envolvimento com a saúde global e humanitária. Meu objetivo agora é conciliar meu trabalho no Brasil com novas missões de curto prazo e, talvez, atuar como consultora ou instrutora, compartilhando essa experiência com outros profissionais de obstetrícia, inspirando-os a considerar o trabalho humanitário e a valorizar o papel crucial da nossa profissão em contextos de vulnerabilidade, tanto aqui quanto fora do país”, projeta Natalia.
Fonte: Ascom/Cofen – Clara Fagundes


