Recentemente, fomos confrontados com uma nova resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que restringe, ainda que de maneira indireta, a ampliação das atividades dos profissionais de saúde, as quais já são regulamentadas por leis e resoluções específicas de cada conselho profissional em nível nacional. A resolução CFM nº 2416, de 19 de setembro de 2024, estabelece os atos que são considerados próprios da prática médica e inclui, especificamente, a proibição de prescrição de medicamentos, solicitações de exames e diagnósticos por parte de profissionais de saúde de diversas áreas, incluindo os Enfermeiros, Enfermeiras e Obstetrizes.
O escopo de prática dos Enfermeiros e Obstetrizes abrange a atuação com base em suas competências adquiridas durante a formação, definindo a extensão e os limites das suas responsabilidades conforme a legislação vigente. Suas habilidades e conhecimentos são fundamentais na identificação das necessidades de saúde da população que, por sua vez, fundamentam diagnósticos e ações terapêuticas apropriadas. Tais ações podem incluir a prescrição de medicamentos e a solicitação de exames, seguindo diretrizes e protocolos estabelecidos pelo Ministério da Saúde e outras entidades governamentais.
As preocupações levantadas pela resolução CFM nº 2.416/2024 impactam não apenas a Enfermagem e as diferentes categorias profissionais da saúde, mas, sobretudo, a saúde da população brasileira. Um dos pontos críticos é de natureza jurídica: a resolução busca proibir ações que já não são exclusivamente atribuídas aos médicos, em virtude dos vetos da Lei 12.842/2013 (Ato Médico), que regulamenta o exercício da Medicina. Essa lei foi amplamente debatida na sociedade brasileira e os vetos foram mantidos pelo Parlamento, o que torna a resolução do CFM uma afronta à legislação existente. O Conselho Federal de Enfermagem expressou sua posição sobre a questão e buscará medidas judiciais contra o CFM, algo que outros conselhos profissionais também podem considerar.
Do ponto de vista técnico, observa-se que essa resolução caminha na contramão das recomendações globais e das evidências científicas no que se refere ao trabalho interprofissional, que requer a interação e comunicação entre os profissionais para integração das ações de saúde e o reconhecimento dos saberes e práticas de cada uma das diversas áreas que compõem as equipes. Estudos têm mostrado a efetividade da prática colaborativa no que se refere à satisfação dos usuários com o atendimento, à melhoria na adesão às terapêuticas medicamentosas, ao acesso e utilização dos serviços de saúde, com redução de tempos de espera e redução em taxas de readmissão e complicações de doenças.
Adicionalmente, há um aspecto político a ser observado: o SUS, como um sistema de saúde, promove o trabalho interprofissional e a integração dos serviços prestados por diferentes profissionais. Exemplos bem-sucedidos, como as equipes de Saúde da Família, os Núcleos Ampliados de Saúde da Família, as equipes Multiprofissionais, bem como as experiências nos Centros de Atenção Psicossocial e as Redes de Atenção em Saúde, espalhadas pelo país, demonstram a efetividade e importância dessa abordagem colaborativa.
Por fim, é válido considerar que a resolução se opõe às diretrizes que promovem a interprofissionalidade na formação dos profissionais de saúde. As Diretrizes Curriculares Nacionais da Medicina incentivam a interprofissionalidade, o que envolve a formação para o trabalho em equipe de maneira colaborativa com profissionais de outras áreas. Ao defender a resolução 2416, o CFM parece não considerar as diretrizes que orientam sua própria formação.
Essas questões levantam reflexões sobre o contexto atual da saúde, evidenciando uma posição que propõe a centralização do poder, ao invés de apoiar um modelo de atendimento que priorize as necessidades das pessoas. A recente resolução do CFM, lançada em um momento simbólico de aniversário de 34 anos de existência do SUS, pode sinalizar uma desconexão com as políticas públicas de saúde e de bem-estar, possivelmente comprometendo o acesso, a qualidade e a efetividade da assistência à saúde da população brasileira.
São Paulo, 23 de outubro de 2024
Fonte: EE/USP